O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) se constitui como um movimento de luta e reivindicação dos direitos da população em situação de rua. Gabriel Amado, psicólogo e apoiador do movimento, nos conta em entrevista sobre a importância do movimento, suas ações de luta e a relação dessa população com o uso de drogas.
Falando também sobre a população de rua e uso de drogas, o documentário “Consultório na Rua – a rua não é um mundo fora do nosso mundo”, realizado pelo Departamento de Atenção Básica (DAB/SAS/MS), apresenta e discute a experiência dos Consultórios na Rua, nos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro, em junho de 2013. O vídeo mostra também o caminho percorrido por cinco equipes em seus desafios diários para possibilitarem o acesso, criarem vínculo e superarem as dificuldades que o cuidado a essa população exige.
Como você vê a importância da organização do Movimento Nacional de População de Rua a partir da sua visão como psicólogo, que está dentro e fora do movimento?
Então, eu vejo como uma evolução política muito grande com relação à representatividade dessa população, para quem a gente está muito acostumado a fazer política, principalmente nós, profissionais, que acabamos tendo uma distância dessa vivência, dessa realidade. Então, essa organização, o protagonismo da população de rua, de eles mesmo estarem ocupando esses espaços de construção política, eu vejo como um enorme avanço da política. Dessa possibilidade de dialogar com quem realmente sofre a opressão. Existe um distanciamento nosso, institucional, com a população de rua e às vezes não permite essa aproximação. Só que hoje o protagonismo está tão forte que existe uma disposição da população de rua de estar discutindo quando o assunto são eles. Existe um lema que a população de rua segue muito, que é “nada sobre nós sem nós”. Então, eu vejo de suma importância essa organização de estarem lutando por serem reconhecidos como sujeitos de direito. Eu vejo que eles já pularam até uma etapa de visibilidade. Primeiro, de serem reconhecidos como seres humanos, e agora mais ainda: “somos sujeitos de direito”. Como assim a população de rua como sujeitos de direito? Então eles vêm pra dar um tapa na nossa cara, eles têm que ter saúde e educação como todos nós, no princípio da universalidade. Então, eles estão ali, sim, para fazer valer os direitos constitucionais. Eu vejo essa organização deles como superimportante, principalmente no viés da representatividade.
Como eles estão se organizando em nível nacional?
Existe um movimento nacional da população em situação de rua, uma articulação em que eles têm cadeiras centrais em políticas de conselhos nacionais, que existem por estados. Hoje, já existe uma grande discussão de uma autonomia por estado, porque existe uma centralização na organização nacional de população de rua, que tem o contato direto com a presidência, com as políticas mais do centro do país que são importantes. Hoje a gente fica muito preso a diretrizes que vêm mais do centro do país. Então, hoje já está sendo discutida uma autonomia dentro dos estados que não dependa muito dessa centralidade, mas que já há na maioria dos estados esse movimento. Claro que a maioria dos estados tem suas peculiaridades dentro do movimento, cada um tem o seu processo. A gente sabe que dentro dos estados há segmentos religiosos mais voltados ao campo assistencialista, mas, ainda assim, o processo que a população de rua, que o movimento está conquistando, é um processo de direito, é um processo de conquista daquilo que é pra ficar. Então eu vejo que cada estado tem a sua peculiaridade de organização, mas todos estão nessa evolução na luta por direitos. Eu vejo que existe essa relação muito forte com a organização nacional de população de rua, que é importante, só que hoje se luta mais pela autonomia dos estados.
Quais são as ações que o movimento de população de rua realizam atualmente?
A gente vem lutando dentro de vários setores, tanto da assistência quanto da segurança pública, da saúde. Vamos pegar o exemplo de Florianópolis. No início do ano, a Polícia Militar, que estava fazendo uma abordagem bem forte com a população de rua, numa violência… O que a gente fez? A gente convocou o coronel, o comandante da PM, para desenvolver esse processo de sensibilização, para perguntar o que estava acontecendo, e também falar da população de rua, colocando a população de rua como pauta dentro desses espaços. Foi quando conseguimos fazer uma reunião na Câmara de Vereadores de Florianópolis, junto com o coronel Araújo. Posterior a isso, não digo que melhorou, porque a própria PM, com a militarização da polícia, não consegue que ela afrouxe tanto, mas diminuíram um pouco as abordagens arbitrárias, mais agressivas por parte da PM. O que aconteceu foi que a Guarda Municipal meio que assumiu esse papel da repressão. Então, junto com a Defensoria Pública, estamos encaminhando uma série de documentos de denúncia da galera da rua, que está recebendo umas abordagens bem violentas por parte da ROMU, aquela Ronda Ostensiva, que é tipo um BOPE da Guarda Municipal. Estamos nos aproximando mais da Guarda, no intuito de fazer essas denúncias, porque está ocorrendo muita violência na rua.
Nos espaços da saúde, principalmente no campo da saúde mental, que é bem defasado em Florianópolis, tem o Consultório na Rua, que é defasado, a equipe é defasada. A própria equipe, às vezes, não gosta de trabalhar com população de rua. Então aquela abordagem fica pior ainda, na aproximação com a rua, o vínculo é primordial. No momento em que estão defasados esses espaços, abre campo para a lógica manicomial. Então, ao invés de acessar a rede comunitária, a rede que está perto da comunidade, acaba sendo utilizada a lógica de internação, que não tem resultado efetivo algum. Hoje, em Florianópolis, existe uma ação muito forte dos centros manicomiais, que são as comunidades terapêuticas. São os atuais manicômios que acabam não tendo uma conexão com a Rede. Isso acaba complicando, às vezes a gente deposita uma expectativa, mas as pessoas acabam não conseguindo fazer uma ideal vinculação num processo de recuperação autônoma. Hoje estamos lutando, estamos com várias reuniões, porque nós estamos com um projeto de fortalecimento dos dispositivos da saúde mental dos territórios, o próprio CAPES AD 24h, que está sendo prometido há mais de três anos em Florianópolis. Estamos fazendo pressão para saírem esses dispositivos. No momento que sair um CAPES AD 24h, já está comprovado que diminui drasticamente as internações. Então, a gente varia os tensionamentos, o papel do movimento é tensionar as políticas para fazer o básico. E o que é o básico? É fazer valer a constituição. O nosso papel é dar visibilidade para uma população tradicionalmente invisível na sociedade.
Como você vê o uso de drogas na população em situação de rua?
O uso de drogas da população de rua às vezes acaba sendo um pouco mais prejudicial, justamente pela droga ocupar um campo muito forte de prazer, devido à falta de outros prazeres. Quando a droga supre os espaços do Estado, da família, a pessoa acaba tendo uma relação mais prejudicial com a droga. A gente não vê em nenhum momento a droga como o problema; muito pelo contrário, às vezes ela é a única fonte de prazer na rua. Existe uma estigmatização muito grande da população em situação de rua em relação ao uso de drogas. Nesse viés do uso prejudicial, parece que todo mundo da rua acaba tendo uma roupagem de drogado. Até porque essa palavra, drogado, já é estigmatizadora. O uso de drogas existe, e ele fica mais precarizado, numa relação mais prejudicial, porque as relações de lazer e prazer são muito curtas, então tu não consegue gerar muita autonomia, porque você também não tem muita coisa pra te depender também. O próprio [Roberto] Tykanori, atual gestor da coordenação da saúde mental do Ministério da Saúde, tem uma frase que é muito importante nesse campo da saúde mental: “quanto mais dependente nós formos de muitas coisas, mais autônomos nós somos”. Essa dependência não é no campo da substância, é se relacionar com a cultura, com esporte, edução, moradia. É essa ampliação de dependência, de lazer, de prazer, que a gente se propõe para estar lutando com a população de rua, para que eles não fiquem necessitando de um prazer único com a droga, que lhes causa prejuízo. A população de rua vem de uma exclusão da família, da sociedade, e acaba enxergando na droga um campo muito forte de prazer que acaba gerando uma relação prejudicial. Assim todos nós, se a gente depender de uma coisa só para ganhar prazer, vai se tornar prejudicial também, pode ser a droga, pode ser a internet, enfim, pode ser qualquer coisa. A rua, por ter uma precarização, de exclusão, de não ter muitas opções de prazer, ela, sim, acaba tendo uma relação um pouco mais prejudicial com algumas drogas. Mas isso não ocorre com todo mundo. As pesquisas já estão mostrando que é uma parcela de 30 a 35%, no máximo, que é uma parcela muito igual ao resto da população, que tem uma relação de prejuízo com a droga. Só que, como existe uma estigmatização, um preconceito com a população de rua, acabam taxando todos como ladrões, como usuários prejudiciais, perigosos.
O movimento de população de rua faz alguma ação específica com relação ao uso de drogas?
Isso que estamos nos propondo agora. Estamos com um projeto para atuar dentro dos centros POP de redução de danos. A gente vem se preocupando com essa questão, no momento que a gente faz a reunião com a saúde, buscando o fortalecimento dessas ferramentas, desses dispositivos de saúde mental. É justamente isso que a gente quer, a gente quer estar sendo visto com outro olhar, com o olhar de cuidado. Hoje a gente anda com uma preocupação sim, porque os próprios espaços de internação, as fazendas terapêuticas, têm sido bem complicados, tem algumas fazendas que acabam escravizando as pessoas lá dentro, não dando autonomia, colocando à força que eles rezem; a cura fica muito atrelada àsalvação religiosa. A gente vem se preocupando com isso, e lutando pelo fortalecimento dos dispositivos de saúde mental públicos. Estamos atuando dessa maneira muito forte e nos colocando à disposição para construir, dentro dos dispositivos da assistência, um espaço para conversar sobre drogas, que é esse projeto que estamos para fazer nessa área de redução de danos que vamos apresentar agora para o município de São José – SC.